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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A ventania que fere a pele - Samara Inácio*

Foi quando vi aquela foto que tive certeza de que tudo já era vão. Sim, nada mais poderíamos fazer. Teus dias eram suspensos e nessa suspensão da realidade embarcamos, nós, sem rumo e sem paradeiro.
Acordamos numa época desconhecida, num tempo que parecia não mais nos acariciar, mas que nos perfurava a cada vã tentativa de compreensão. Não há mais tempo que nos possa abarcar, nem nos acolher. Se o tempo é inimigo dos mortais, sua declaração é aberta e a guerra é iminente. Numa outra dimensão, talvez, possamos nos entender, mas agora o entendimento é destruição.
Foi naquele parque que percebi que algo estava diferente. Tão diferente que imediatamente minhas mãos apontavam para uma direção contrária da que estava. Segui-as. Do outro lado estavam coisas há muito deixadas, ressecadas pela pressa da mudança impensada. Senti que era necessário mais uma vez retornar e retomar as rédeas. O caminho estava aberto, restava trilhá-lo, cuidadosamente, porém, corajosamente.
Quando te vi naquele balanço, cadenciando a vida e a visão, entendi que o momento chegava e era inevitável. Repensei as palavras, ensaiei o discurso, refiz as dores, os gestos. Preparei-me.
Quando eu caminhava, a ventania veio em nossa direção. Eu não sabia se deveria ir, fugindo do perigo que representava tentar salvar a ti. As folhas voavam alto, a poeira me fazia espirrar. Vi seus olhos turvos. Vi sua pele morena que era violentamente atacada pelo vento incessante. E o balanço, no qual estava, embalava cada vez mais alto. Desespero eu vi no teu olhar. Descontrole. Não havia como parar. Solução? Pular. A altura daquilo era imensa. Risco de morte, um pulo, um salto. O chão. A dureza do solo aguardando a queda anunciada.
Consegui ver sua blusa. De um lilás claro, cheia de pedras que decoravam o apagamento da cor, que caia tão bem com a tonalidade da tua pele. Triste pensar que a qualquer momento ela estaria manchada pelo vermelho forte do sangue que jorraria. Não, não sou fatalista. O que esperar daquela ventania inexplicável que viera para embalar teu balanço nesta cidade serrana? Não, não posso nada contra a tua vontade. O tempo sempre foi teu e continuará sendo até que compreendas que “um” às vezes significa “múltiplo”.
Tentei acender um cigarro. Coloquei a mão na frente do fogo. Queimei-a. Acendi o cigarro, contudo. Enquanto eu fumava, fiquei observando o balanço. Subindo e descendo. Deixando fluir a brisa envolvente, com teu perfume de armário velho, limpo. Pensei, que podemos nós, não é mesmo? Que podemos quando não há maneira de fugir a essa areia trazida pela ventania? Quando a pele começa a sangrar em pontos diferentes e a areia promove pequenas infecções, em pontos estratégicos do corpo.
Enquanto eu consumia o cigarro, vi pequenas bolhas de sangue formando-se na minha pele. Sua blusa lilás claro começava a colorir-se. Uma pequena mancha vermelha aqui, outra ali. Seus lábios rosados estavam pálidos agora. Seu olhar buscava o vazio, olhando ao longe e tentando dar conta de uma imensidão intratável. A pele dos teus braços escamava e eu assisti de longe. Ao meu redor, as folhas mexiam-se, era um bailado sem explicação. Pareciam aguardar algo. Um acontecimento. Um grito.
E continuavas lá. No balanço. Subindo e descendo sem parar. Embalada pela velocidade do cata-vento que girava cada vez mais rápido. E esse sol que não pára de brilhar e nubla minha visão. Seus olhos estão atônitos. O corpo parece não agüentar mais o embalo grosseiro e brusco. Sei, tu sentes. A madeira começa a ceder. As cordas não agüentarão por muito tempo.
Lembrei daquele dia alegre em que estávamos voltando. Olho no olho. Uma alegria indecente de estar lado a lado. E as estradas que ficavam para trás. A paisagem que passava e não notávamos. Que importavam as pessoas ali? Éramos vontade, desejo. Um desencontro, era isso que nos tornávamos sem perceber. Tudo estava ficando também para trás. A alegria aparente, o contentamento presente. A certeza incerta de que as coisas dariam certo. O tempo era aquele e a dependência era vontade. Apenas isso. Cri que a resolução estava no tempo. E que esse tempo não tardaria a chegar.
Mas naquela cidade em que chegáramos tudo mudou. A recusa. A negativa aflorando nos lábios. O choro convulso a espera da oportunidade certa de começar. Não, não consegui olhar e dizer tchau, adeus. Não era o momento ainda. E aquele dia passou. Terminou como se um pudesse sucedê-lo. Outro, porém, não existiria. Contentamento pungente. A luta constante estava ali, a executar-se, e não demoraria a sair o vencedor da batalha duradoura, destruidora.
Caminhei pelas ruas observando tudo que ali estava disposto. Pessoas, construções, pequenos edifícios de cidade do interior. O ar quente, o calor insuportável. O suor e odor do sol que as pessoas traziam e deixavam no vento que me batia na face. Havia um destino a seguir, a cumprir. E não deixei o meu caminho. Deixei outras coisas no caminho, pessoas, objetos, respeito. Olhei e as vi pelo chão, espalhadas. Que espera doentia a minha, meu deus. Quanta bobagem dita em horas de retribuição do calor humano falho e fátuo.
Essa minha insistência boba. De que adianta conservar um sentimento límpido, leve, quando não há como conjugá-lo em tempo algum. Observei sua trajetória, meu bem. Assisti a ela como se não me fosse possível acreditar que você seria capaz. Vejo esse balanço subindo e descendo, embalado pela ventania, e sinceramente não sei se quero que ele pare. E se ele parar, quero ver teu corpo no chão. Desculpe-me. É só um desejo precipitado de quem se sente previamente julgado e condenado sem provas e sem direito a defesa. A criatura mais vil que pode ter habitado este planeta deve ter tido direito à defesa, a uma segunda chance. No entanto, minha condenação fora sumária e a minha pena imensa.
O vento parou, de repente. Ao longe, vi o sol brilhando e preparando-se para seu espetáculo de fim de tarde. O céu começava a adquirir tonalidade avermelhada, alaranjada. A ventania, todavia, continuava. Sempre mais forte. Tu fingias não mais sentir. O desenho do teu rosto mostrava que o medo consumia a calma. Quantas e quantas vezes tentei dizer. Dessas tantas vezes, o que consegui foi pouquíssimo. Palavras inúteis as minhas.
O balanço parou no ar. Por um momento, apenas por um momento vislumbrei tua face como se o tempo tivesse parado e fosses ser para sempre assim. Menina. Teu sorriso abriu-se e senti um leve movimento na rota do tempo. Vi tua imagem parada, fora do balanço, no ar. Teus braços movimentam-se, teu cabelo voa, desalinhado. Sentado aguardo o desenrolar desse momento. O movimento do sol é mais rápido que teus movimentos. Aceno. Tu não me vês. Estás acima, tão acima das nuvens que já não sei mais se o que vejo é real.
A ventania pára. O tempo pára. O sol pára. O céu, porém, avermelha-se. Reconheço teu cheiro. Sei, sei, tu estás perto. Mas em que lugar da minha tarde, findando, tu te escondes? Diz-me. Ao redor de nós vejo as coisas movimentando-se. Os carros que passam desabaladamente como se os pedestres fossem invisíveis, indestrutíveis. As pessoas apressadas que descem as calçadas e passam por dentro uma das outras. A noite que chegara para elas e a tarde que se finda num crescente infinitesimal para nós, aqui. Quão diversas realidades. E por quanto tempo ainda assim? Volta tudo que busquei esquecer. Volta a raiva, a revolta, o não-sentimento. Fica o cheiro de armário velho e limpo, penetrando na minha pele, mas não me faz parar.
A continuidade do cheiro quase me faz olhar a realidade exterior. Procuro uma fresta pequena e ácida, que me arranhe e me descubra. Repentinamente, escuto um baque seco. Olho ao redor e não vejo nada. Tu terás subido mais que o astro sol, que continua parado nessa tarde que não termina. Minha procura é brusca. Onde estás? – eu grito. Nenhuma resposta. Nenhum eco que responda. Ouço sinos quebrando o ar, tilintando e tilintando e tilintando. Lembrei-me, hoje é domingo. Nas tarde de domingo que se findam a missa se executa. Um padre agora reza em prol de mim, em prol daqueles que estão sempre de braços dados com o sofrimento.
Onde estás? – grito novamente, agora mais forte. Sem medo, jogo o cigarro nas folhas. Sinto o calor aumentando. Olho-as e uma labareda vai aos poucos surgindo. Tento sair, não posso. Olho em volta e não te ver me causa medo. Terá se transformado em estrela, em mais um astro inútil que enumera e povoa a galáxia. Longe de onde estou, vejo uma vala aberta e dela emana uma luz parda. Os sinos continuam a tilintar. Tento chegar mais perto, mas minhas pernas tremem e o frio contraria o calor da fogueira de folhas que eu fizera involuntariamente. Tento não correr. Tento enganar o medo que tenho de sair do meu estado de abulia. Tento, juro que tento, mas meu corpo não atende mais, não pode mais.
Os sinos param. Os carros correm. Pessoas continuam a adentrar nas outras e nada é sentido. É natural. Minhas pernas movem-se agora. Caminho em direção ao desconhecido e temo pelo que posso vir a encontrar. No caminho que trilho encontro plantas mexendo-se. Flores se abrindo. Folhas verdes e orvalhadas. O chão está úmido. Teimo em gritar. Teimo em não me conformar com a resposta. Uma luz vai me fazendo chorar. Lágrima a lágrima vou caminhando. O armário velho e limpo parece estar aberto agora. O som daquele baque seco parece mais forte.
Não preciso mais da resposta. Daquela vala vem o cheiro de armário velho e limpo. Aquela luz? Bem, é de ti que ela vem. E tudo se ilumina quando chego perto. Os animais e pequeninos insetos se aglomeram ao redor. Abro caminho para chegar mais perto. Teus olhos abrem-se. Onde aquele brilho? Nada, não restou nada. Teu corpo intacto vai perdendo aos pouquinhos a luz, ela vai tornando-se cinza. Também tua blusa lilás claro vai tomando outra cor. Tua pele assume um cheiro distante, uma tonalidade indescritível. Tento chorar, já não posso. Vou te desconhecendo aos poucos. Enquanto observo os animais, contemplo tua desmaterialização. Não posso dizer adeus. Para onde será que tu vais agora? Queria saber para poder te escrever, saber notícia, essas coisas.
Viro-me e saio. Não, desculpe-me, mas não posso olhar para trás. Você foi não sei para onde. O que me cabe é continuar. Sinto ser este meu destino e talvez seja essa minha harmartia, mas seguir sem ti não é uma escolha. Preciso ser feliz, sabe. Tua desmaterialização é meu renascimento. Minhas pernas se fortaleceram e posso emitir o som seguro dos meus passos. Curioso, o medo não está mais comigo. Escuto um som, vindo de longe. Parece conjugar um verbo. Olho e vejo minha vida numa pequena animação. E há cores. E são quentes. A ventania cessou. Acendo outro cigarro. Em minhas mãos, não, nelas não sinto nada, não percebo nada.

*Samara Inácio é Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professora de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira da Universidade Regional do Cariri (URCA) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Teoria Literária (NETLI) - URCA

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